Ela nasceu em Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio, já se fingiu de menino para jogar bola, quase apanhou na rua por causa disso, e enfrentou a resistência da mãe e dos sete irmãos (ainda tem uma irmã) quando resolveu trocar o atletismo pelo futebol. Aos 34 anos, a jogadora Katia Cilene é um belo exemplo de caso bem sucedido no combalido futebol feminino brasileiro, que tem em Marta, eleita cinco vezes a melhor do mundo, seu cartão de visitas.
Autora de dois gols na vitória da seleção feminina militar sobre a França por 4 a 1, sábado, e um dos pontos de referência da equipe, que enfrenta nesta quarta-feira o Canadá, às 10h, na Escola de Educação Física do Exército, na Urca, pela segunda rodada dos Jogos Mundiais Militares, a marinheira Katia abre um sorrisão e diz que só tem a agradecer ao futebol. Em plena forma e de bem com a vida, ela é, pela segunda temporada seguida, atacante titular do Paris Saint-Germain, após ter jogado no Lyon, também da França, no San Jose CyberRays, dos Estados Unidos, e no Estudiantes e no Levante, ambos da Espanha. Nas suas andanças pelo mundo, que começaram em 2001, quando foi jogar a liga americana, conquistou definitivamente aindependência financeira, expandiu os horizontes, conheceu países que nem imaginava e se tornou poliglota. Hoje, fala inglês, espanhol, francês e italiano, e concilia o esporte com a faculdade de marketing esportivo: — Eu aproveitei e aproveito tudo que o futebol me deu, consegui explorar as chances ao máximo. Sempre soube que não poderia desperdiçar as oportunidades. Posso dizer que vivo bem, consegui ajudar a minha família. Minha mãe tem casa própria, lá em Padre Miguel. No seu aniversário do ano passado, eu a levei para conhecer Paris. Ela ficou muito feliz, contou para todo mundo. Sei que é muito orgulhosa de mim.
Adeus à seleção principal em 2007.
Katia começou a jogar futebol aos 16 anos, por diversão. Até então, era no atletismo que apostava todas as suas fichas de um futuro melhor. Primeiro no Vasco, depois na Mangueira, competiu nos 110 metros com barreira e no heptatlo, modalidade pela qual se tornou campeã pan-americana em 1995, na Venezuela. — Eu conheço a Katia desde os 9, 10 anos. Nós começamos juntos no atletismo. Lembro que, quando cheguei ao Vasco para fazer um teste, os técnicos, Solange e Perón, disseram que eu só entraria para equipe se a vencesse. Eu olhei aquela negrona e pensei: “Ai, meu Deus, e agora?”. Mas corri e acabei chegando antes dela — lembra o tenente Daniel Gonçalves, técnico da seleção feminina. — Ela é como uma irmã. A gente se entende só de olhar. Embora promissora no atletismo, era no futebol que fazia mais sucesso. Nas peladas dos meninos do bairro, Katia era sempre escolhida, para desespero dos irmãos, que acabavam sobrando na divisão dos times. Das lembranças desse tempo, uma é imbatível. — Todo mundo que cresceu comigo em Padre Miguel lembra. Ia ter um campeonato no bairro e os meninos, que sabiam como eu jogava, ficaram insistindo para eu entrar. Eu, então, resolvi prender todo o cabelo para trás, coloquei uma atadura nos seios e fui para o campo. Quando eles entravam no vestiário, eu ficava sentada do lado de fora. Até que o técnico de um outro time começou a desconfiar. Eu consegui fingir um pouco, mas não teve jeito. Ele descobriu, começou uma briga, eu saí correndo, os outros meninos querendo me bater... E aí, quando cheguei em casa e disse para minha mãe, quase apanhei de verdade — conta, às gargalhadas. Bom-humor à parte, o preconceito sempre existiu. Ninguém na família aceitava e sua mãe não entendia por que iria começar a fazer outra coisa, e logo “um esporte de homem”, se estava tão bem no atletismo. Mas os resultados vieram. Em 1994, Katia começou a jogar no Vasco. No ano seguinte, já estava na seleção brasileira, pela qual atuou por 12 anos. Neste período, foi quarta colocada nas Olimpíadas de Atlanta-1996 e de Sydney-2000, eleita a melhor jogadora da liga americana em 2002 e artilheira do Brasil no Mundial dos Estados Unidos, em 2003, com quatro gols. Nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, acabou cortada por causa de uma lesão no joelho direito. O desligamento da equipe veio em 2007, segundo ela, sem traumas. — Não foi uma saída brusca. Foi uma renovação natural. Eu já tinha tido meu ciclo na seleção, que foi muito grande, e que me abriu muitas portas — afirma a jogadora, antes de comentar a eliminação do Brasil pelos Estados Unidos nas quartas de final do Mundial deste ano, na Alemanha. — Eu queria muito que a seleção chegasse longe. Mas, agora, é começar de novo. O difícil é que não tem como comparar. Você vai à Alemanha, aos Estados Unidos, é uma estrutura incrível. Aos 5 anos, uma menina americana já está de chuteira, caneleira, jogando futebol, com os pais à beira do campo. O que acontece aqui com os meninos é natural lá com as meninas. Na França, Katia também não tem do que se queixar. O campeonato feminino lota os estádios, elas usam o moderno centro de treinamento do PSG, o mesmo do time masculino, e o clube paga moradia e carro para as jogadoras. Algumas chegam a ganhar até R$ 45 mil por mês, uma quantia impensável para os padrões nacionais. Por enquanto, completamente adaptada a Paris, ela não pensa em aposentadoria e não imagina o que ainda lhe reserva o futuro. Melhor assim: — Sempre que planejei alguma coisa, acabou acontecendo outra. Agora, eu vou vivendo. Não programo mais nada.
Fonte: Extra Online
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